sexta-feira, 6 de julho de 2007

Imagina se a ficção se tornasse realidade...cuidado com ela!!!


Imagina se a ficção se tornasse realidade…

Era uma vez uma professora chamada Marcolina…

Marcolina tinha sessenta e oito anos e ainda trabalhava ao serviço da comunidade escolar. Era a professora mais idosa na sua escola. A reforma tinha sido sucessivamente adiada por sucessivos decretos que aumentavam a idade para a reforma e lhe retiravam os poucos direitos que tinha adquirido com outros tantos decretos. Sempre que ocorria uma alteração na lei, Marcolina protestava, discutia e vociferava, mas acomodava-se imediatamente à nova situação de continuar a ensinar por mais alguns anos. O ensino era a sua paixão.

A sua vida era uma rotina. Como vivia a mais de cinco quilómetros da escola (engraçado como uns cinco quilómetros são uma longa distância para quem já não pode conduzir); quando acabava o turno da manhã, permanecia na escola à espera das aulas não lectivas da tarde. Pensava, com alguma tristeza, que era o momento do dia em que as suas amigas reformadas dormiam a sesta, refasteladas no sofá da sala, ou no areal de uma praia qualquer….e Marcolina tinha de trabalhar.

Devido à idade já avançada, e à profissão tão desgastante, havia momentos em que Marcolina se alheava um pouco da realidade. Por instantes, saía daquele espaço escolar e refugiava-se no seu mundo de fantasias e ilusões, sonhava com os passeios nunca realizados, com a família que nunca teve… e era feliz. Rapidamente acordava para a verdade, principalmente quando passava junto de alguns alunos que falavam de uma maneira tão diferente da sua e empregavam palavras obscenas. Nesse momento, Marcolina sentia uma revolta imensa por não ter coragem de os enfrentar e de lhes responder à altura. Preferia fingir que não ouvia, sorrir pateticamente e avançar pelos longos corredores da escola, rezando sempre por não levar com alguma lata de refrigerante ou com um palavrão humilhante.

Com uma vida tão triste e sem emoção, ainda havia algo que motivava Marcolina, que a incentivava a levantar cedo, apanhar o autocarro e ir trabalhar: o seu amor à escrita e, em particular, à pontuação.

Marcolina detestava corrigir trabalhos cheio de erros ortográficos, com falta de acentos ou com uma sintaxe terrível, e não suportava uma vírgula fora do seu sítio. A sua obsessão com as vírgulas era dramática. Sofria horrores quando as encontrava trocadas por um ponto final, ou ainda entre o sujeito e o predicado ou o predicado e os seus complementos.

Após a correcção dos trabalhos de casa, o que normalmente acontecia após o jantar, ficava tão furiosa que passava a noite indisposta e muito incomodada. Em terríveis pesadelos, os seus sonhos eram povoados por vírgulas que surgiam cada vez mais animadas e enormes. Por vezes, o sonho parecia tão real que conseguia ver, na extremidade de cada vírgula, uma carinha conhecida e associada ao seu malfeitor. Os inimigos da pontuação eram os seus alunos! E Marcolina angustiava.

Esta obsessão pela pontuação, em particular pelas vírgulas, levou a que alguns alunos menos simpáticos lhe tivessem atribuído, mas carinhosamente, a alcunha de Marcolina, a Virgulina.

Certo dia, Marcolina folheou o jornal da escola e descobriu um artigo em que um aluno falava sobre a temática das obsessões e fantasias e em que a professora Marcolina era discretamente referida como exemplo. A sua exigência exacerbada e o seu rigor metódico eram, assim, apresentados ao mundo na forma de uma alcunha: a «Virgulina».

Marcolina ficou chocada. Aquele artigo era um verdadeiro atentado à sua dedicação às letras, ao ritual sagrado da correcção dos testes, à sua caneta sempre pronta para deixar a marca vermelhinha. Muitas vezes, fantasiava Marcolina sobre o poder da sua caneta: era a sua extensão que assinalava e erro, o borrão, o palavrão, e que colocava as vírgulas inexistentes. A caneta vermelha fazia parte do seu mundo!

Marcolina começou a deprimir. Sentia-se incompreendida e gozada. Sabia que a olhavam de lado, que faziam comentários à sua pessoa. Sentia-se um ser insignificante à beira do fim. Nesse dia, decidiu deitar-se no velho sofá da salinha de reuniões e dormitar um pouco. Quando acordou, estava muito animada. Pela primeira vez, desde há muito tempo, tinha tido um sonho divertido, animado e sem frustrações e zangas. Levou algum tempo a lembrar-se de alguns pormenores e sorriu maliciosamente. Aquela sesta tinha sido a solução. Marcolina sabia que o grande momento só poderia chegar no final do ano, mas não se importava. Cada minuto de espera era um minuto de prazer.

Marcolina arranjou um pequeno bloco de notas onde passou a registar metodicamente cada passo que deveria tomar para executar, na perfeição, um plano tão perfeito.

Passaram-se alguns meses e finalmente chegara o esperado dia da sua vingança. Marcolina recebeu provas de exame de Português para corrigir. Tinha chegado o seu grande momento. Sentada na sua cadeira preferida, e há tantos anos utilizada no seu nobre dever de trabalhar e de colocar a sua querida pontuação, Marcolina iniciou o seu maquiavélico plano. Pegou na caneta vermelhinha e colocou-a no estojo. Agora, só necessitaria de uma azul clara ou escura, preta escura ou mais clarinha e o seu trabalho iria começar.

Um prazer incontrolável agitava o seu ser quando começou a concretizar o plano que arquitectara durante tanto tempo. Os seus olhos dilatavam com tanta concentração. Era preciso encontrar o local certo, utilizar a vingança mais apropriada. Marcolina nunca pensou sentir tanta emoção! Queria continuar assim interminavelmente, sem nunca chegar ao fim.

Terminou a sua tarefa com sucesso. Retirou a caneta vermelha do estojo e começou a corrigir os exames. A sua vingança estava concluída. Nunca lhe passara pela cabeça forjar provas de exame, colocar vírgulas em sítios incorrectos, erros ortográficos e de acentuação em todas as palavras que pudesse adulterar. Esta tinha sido a maneira encontrada por Marcolina de se vingar das humilhações sofridas, por todos os que a insultaram e desrespeitaram. Era a vingança de uma vida perdida e reduzida à insignificância de ser apenas a Virgulina. Agora, estava feliz!

Carol, a futura Marcolina


1 comentário:

analucas disse...

Fantástica, a construção desta personagem. Simultaneamente trágica e hilariante! A professora Virgulina revela o espírito de humor da autora e a sua atracção pela figura da bruxa que gosta de encarnar no carnaval ou em actividades de teatro que faz com os alunos. A vingança, descrita de forma a deixar-nos participar do gozo da personagem,é divertida. É, no entanto, a apoteose trágica do final da carreira da professora ransformada em bruxa!